terça-feira, 14 de julho de 2009

REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA (em termos de custo de oportunidade e escolha intertemporal)

Em razão dos ataques organizados pela facção criminosa PCC – Primeiro Comando da Capital, contra as forças da ordem, no estado de São Paulo, gostaria de tecer alguns comentários sobre a temática da violência.
Inicialmente, é preciso dizer que os atos de violência, sobretudo quando disseminados e perpassando todo o contexto social, não são mais que um sintoma, evidenciando o quadro de anomia em que vive a sociedade. Eles não são auto-explicativos, havendo sempre causas profundas e motivações fortemente arraigadas. O que nos leva a deduzir que discursos simplificadores, atacando a desumanidade dos bandidos e pregando a Lei de Talião como solução não contribuem para elucidar os meandros do mundo do crime e equacionar ou conter a evolução do problema. Da mesma forma que um indivíduo submerso em problemas pode acabar cedendo às drogas ou assumir atitudes de risco contra sua vida e a de terceiros, uma sociedade que acumula muitas mazelas e tensões sociais acabará tendo de extravasá-las de alguma forma, cedo ou tarde. E esse fato tem provavelmente muito mais relação com a biologia do que propriamente com a ética. Desse ponto de vista, a violência social seria algo não estranho à sociedade, mas um fato natural, presente e decorrente dela mesma, vetor resultante das inúmeras forças conflitantes existentes. Se a sociedade inteira e as instituições todas violentam boa parte dos direitos fundamentais da sua população, se as regras do jogo são injustas, haverá de ter um momento de caos e ao mesmo tempo de catarse para que aquela sociedade ache um novo equilíbrio. Crises são momentos de oportunidade exatamente por isso. Traduzindo popularmente, diante de crises profundas "ou vai ou racha".
Outro dado importante é percebermos que a sociedade brasileira é violenta no sentido mais amplo possível. A violência aqui é dos indivíduos contra os indivíduos, dos indivíduos contra o Estado e, finalmente, deste último contra os indivíduos. Na verdade, o Brasil lembra um pouco a tese do Hobbes sobre o estado de natureza, onde todos confrontam e são confrontados por todos. Aqui é muito verdadeira a assertiva homo homini lupus. E é preciso ter em mente que a violência “simbólica” figura entre as mais graves possíveis: o déficit institucional (ausência do Estado), a ineficácia das políticas públicas, a corrupção endêmica, a inoperância dos poderes, os preconceitos arraigados na sociedade. Que violência pode ser maior que muitos milhões de brasileiros em situação de risco social e insegurança alimentar? Que crime é maior que nossa iníqua distribuição de ativos econômicos (renda, riqueza, educação, poder)? Uma sociedade que é violenta nos mais amplos e multiformes sentidos não pode ingenuamente esperar que sejam pacíficos e cordiais seus cidadãos. O paradoxal é que é verdadeira também a tese que defende sermos nós brasileiros prestativos, receptivos, solidários; mas também somos, e as estatísticas o provam, uma das sociedades mais violentas do mundo. Como milhões de olvidados e marginalizados poderiam reconhecer-se como parte de uma sociedade que perversamente os alija e pretere? Como haveriam de desenvolver um sentimento de "pertencimento" à essa mesma sociedade e às suas regras, que os discriminam e isolam, distantes e invisíveis, para não incomodar suas noções de beleza e justiça?
Há também algo estranhamente contraditório e perturbador na psicologia social do brasileiro, uma espécie de desvio moral-cognitivo: as faltas e culpas são sempre “do outro”, não reconhecendo em si nada de errado e desabonador, nada que contribua para agravar as manifestações de violência. Donde surge o paradoxo: se todos se crêem inocentes e acreditam na culpa dos demais, ou todos somos loucos ou somos todos culpados. Esse tipo de pensamento gera a responsabilização do outro pelos problemas que são de todos, coletivos. O que de certa forma coaduna-se com o culto das sociedades latinas ao personalismo, quando jogamos todas as nossas grandes esperanças num “salvador da pátria”, para que ele faça tudo que é preciso e urgente fazer, enquanto aliviamos o peso das nossas próprias responsabilidades.
Pedindo a devida permissão à Ciência Econômica, gostaria de utilizar o conceito de custo de oportunidade. Pensemos que haja duas hipóteses possíveis para o cidadão comum: seguir ou não seguir a lei. O custo de oportunidade de seguir a lei é não obter os eventuais lucros que infringir a lei traria. No meu modo de enxergar o problema, numa situação como a atual, de enorme dívida social, agravada por longos períodos de baixo crescimento do PIB per capita e ausência de desenvolvimento sustentado, o custo de oportunidade de um jovem (homem) da periferia, com baixíssima escolaridade e desempregado, de seguir a lei e as regras morais vigentes é muito alto: quer dizer, ponderando, ele pode achar que vale a pena o risco de entrar no mundo do crime, já que não tem praticamente nada a perder (não se pode perder as oportunidades que não se tem). Ainda mais quando Phds locupletam-se com o dinheiro público e ricos e brancos manipulam a lei a seu bel-prazer (a impunidade, obviamente, aumenta o custo de oportunidade de se seguir a lei). Não estamos afirmando que os jovens das periferias das grandes cidades são potencialmente bandidos, mas apenas dizendo que, dada as circunstâncias atuais, de completa ausência de oportunidades, o mundo do crime pode acabar por seduzir uma parcela maior de jovens (do que ocorreria em outro contexto mais salutar) com vantagens que a vida dentro da lei e dos bons costumes nega-lhes costumeira e peremptoriamente. E ainda que, de fato, o crime não compense (pelo menos, não para os pretos, pardos e pobres, que superlotam as penitenciárias nacionais; já para a plutocracia nacional...), uma boa dose de "dissonância cognitiva", ou simplesmente desespero, levá-los-á a crer que possa sim ser compensador. Entre as vantagens, ou o "lucro", que a vida no crime pode trazer aos jovens, todas de fortíssimo apelo, temos: dinheiro, a atenção das mulheres, estima, segurança, sentimento de "pertencimento" e poder, respeito, visibilidade (melhor é viver alguns anos com visibilidade, que viver uma vida invisível: aliás, esta é a regra de ouro do capitalismo globalizado pós-moderno!). Numa sociedade que os nega como seres humanos, portanto, uma sociedade injusta e anti-democrática, por que eles deveriam respeitá-la e zelar por ela (aí se tem a sementeira de uma guerra civil).
A questão de entrar ou não no mundo do crime pode também ser vista sob o ângulo da escolha intertemporal. Sucintamente, enquanto os jovens das classes alta e média sacrificam o presente (com estudos e poupança) em nome de um futuro melhor (porque a probabilidade deste futuro vir tal como o planejado e almejado é muito grande), os jovens filhos da indigência e da pobreza desconfiam, e com atilada razão, de que não terão o futuro que desejariam. Se não há futuro, o presente é um fim em si mesmo. E se isso é verdade, e se é verdade também que eles são não mais que párias, deserdados, a conduta lógica (embora isso possa chocar os mais sensíveis ou cínicos...), conquanto imoral e ilegal, é tentar conseguir o que não se tem entrando para o mundo do crime (se nunca me deram, nem hão de dar, vou lá eu mesmo e pego).
Ainda há saídas possíveis, logicamente, além das retaliações covardes, com institucionalização dos esquadrões da morte e execuções sumárias: a efetiva promoção do desenvolvimento econômico, gerando mais emprego e renda, com mais transferência de renda monetária às famílias em maior risco social (essa transferência de renda ajudaria a diminuir, um pouco que seja, o alto custo de oportunidade de uma vida dentro da lei e da ordem); a implementação de políticas públicas voltadas para os jovens da periferia, ofertando-lhes bens públicos e sociais, como escolas de qualidade e oficinas de música, dança, teatro, esportes e arenas para debates políticos, sociais, culturais e, evidentemente, uma política de segurança pública inteligente, integrada e humanizada, que não seja refém da corrupção e dos feudos corporativistas. Assim, ao invés de obter respeito e visibilidade nas quadrilhas que assaltam e traficam, os jovens reencontrar-se-iam novamente a si mesmos e uns aos outros na arte, na cultura e no esporte (e, via efeito-imitação, atrairiam até mesmo os que se lançaram ao submundo).

Tádzio Nanan
Economista

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