domingo, 30 de março de 2014

POEMAS DE TÁDZIO NANAN - PARTE 1

LUTAR

Em um mundo brutalmente cindido pela desigualdade
O homem não pode restringir-se ao sonho particular:
Chefiar isso ou aquilo, curtir e gozar; urge participar
Dos assuntos públicos, organizar e lutar com vontade
Em um mundo por massacrante injustiça marcado
Deve-se vestir o uniforme, desfraldar a bandeira, ir à guerra
Contra vetusta ideia que nos assombra, deprecia e aferra:
O todos contra todos; oposto do paraíso sonhado
O homem comum percebe o caos e clama por um ideal
Se padecem os irmãos, como pode descansar à noite?
Não pode sorrir quando em tantos a vida dói como açoite
E essa desfaçatez de se dizer a iniquidade algo normal
Mas, se cada um fizer sua parte, não calar, contra-atacar
Se cada grito e cada lágrima puderem ser vistos e escutados
Mais e mais homens e mulheres se erguerão como soldados
Contra o mal: a atroz injustiça, a desigualdade secular


NO CENTENÁRIO DE MEUS AVÔS, UMA SINGELA HOMENAGEM

Américo, cidadão destemido, agente da história, apaixonado
Pela vida e pela humanidade, pelo futuro e o debate de ideias
Muitos matizes: intelectual, ativista, boêmio, ser multifacetado
Com a palavra, trilhou seu caminho de lutas e arrebatou plateias

Entregou-se às questões de seu tempo com a inteligência privilegiada
Já com o coração comunista, distribuiu cuidados, doçuras, carinhos
E assim tornou-se uma saudade e uma ideia sempre relembrada:
Uma vida plena é aquela na qual se percorre todos os caminhos

Sua casa, alegre e acolhedora, foi por anos nosso parque de diversão
Quando vozinho chegando repartia os chocolates, a festa começava
Os primos todos reunidos, tagarelando em vívida confraternização
Ah, nossa infância, saudosa infância, que a vicissitude não maltratava

Lauro Maciel fez-se a si mesmo, como agem os audazes e valentes
Seus instrumentos de trabalho: o esforço, a palavra, a inteligência
Foi jornalista, mas brilhou como advogado dos mais competentes
Exercendo o ofício como serviço, com honestidade e proficiência

Pai zeloso, contra as intempéries da vida, foi refúgio e abrigo
Mente curiosa e resoluta, temperamento afável e constante
Por isso, onde andou fez amigos – dele não se conheceu inimigo
Pequenino no tamanho, na vontade e no caráter, um gigante

Leu sobre tudo e nas páginas dos livros sagazes observações ia anotando
Sua biblioteca e escritório, para mim, jovem leitor, eram templos de sabedoria
Mas não se engane, frequentemente vozinho Lauro era visto se deliciando
Em Maranguape, no Maguari, em carnavais de transbordante alegria


O SORRISO DE CAROLINA

Dele tanta misericórdia derrama-se, que embarcamos em suas vagas de generosidade e congraçamento;
Nele, a satisfação dos tempos vividos em paz, de esforços semeados e alegrias colhidas;
A fé quando a vida nos chama a cada manhã e o coração aceita seu desafio;
E a doçura da nobre e gentil garotinha enternecendo a alma da mulher.

Dele projeta-se beatífica visão: os homens são todos iguais e irmãos;
Há nele tanta franqueza que um homem confessa seus pecados e implora o perdão, genuflexo;
Santuário onde a inocência vem cultuar a virtude, dedicando-lhe os sentimentos mais lindos;
E uma verdade não dita, mas pressentida por todos: na simplicidade repousam as coisas raras.

Há nele também uma satisfação mundana, provando que, apesar das dificuldades, a vida é bela;
A esperança de que as coisas serão o que se sonhou para elas, e que tudo fará sentido, a seu tempo;
Sublime beleza que, capturada pelo olhar, escorrerá em lágrimas de apaixonamento;
E a comovente ingenuidade dos puros de alma e de coração, dos que desconhecem a maldade, dos tocado pela Graça Divina.

Enquanto é enigma o sorriso de Mona Lisa, o de Carolina é revelação: apenas de nós mesmos dependem as glórias do amor e da comunhão!


O HOMEM

Parido na luz, abortado da treva
Tão grandioso e tão apto à vilania
Fui soldado do amor e do ódio
Desci à lama, subi ao pódio
Nesta contraditória senda que me guia...

Filho da dúvida, inventor de certezas
Sigo na vida como bêbedo, cambaleante
Forte feito sonho, frágil feito o medo
Frequentemente triste, outras vezes ledo
Nesta dicotomia infernal e nauseante...

Fui herói, fui bandido
De um roteiro confuso, tortuoso
Por mim mesmo escrito, a riso e pranto
E pelo acaso, esse eternal espanto
Da trama da vida, maquinador gasoso...

Mas a cruz não é particular: é do Homem
E não é justamente o que vale a pena: o paradoxo?
A contradição: marca da nossa linhagem
O horror, outrossim a glória desta viagem
Desta nossa gente de ideais heterodoxos...

Mas a cruz não é particular: é do Homem
Por quanto tempo mais? Por pouco, creio
O futuro espreita com a bocarra aberta
E nos engolirá a todos – é só um alerta
Inútil; pois o Homem não é fim, é meio!


HOMENAGEM ÀS MULHERES DA MINHA FAMÍLIA

As mulheres da minha família...
São suaves como um carinho
E inebriantes como o vinho

As mulheres da minha família...
São sensíveis como o pranto
E alegres como um canto

As mulheres da minha família...
São divinais como a vida
E terrenais como a lida

As mulheres da minha família...
São elegantes como a decência
E curiosas como a ciência

As mulheres da minha família...
São sonhadoras como o Argentino
E orgulhosas como o pátrio hino

As mulheres da minha família...
São desejáveis como Helena
E cultas como Avicena

As mulheres da minha família...
São talentosas como Da Vinci
São nota dez; não, nota vinte

As mulheres da minha família...
São virtuosas como o Nazareno
E gentis como um aceno

As mulheres da minha família...
São joviais como bons amigos
E sapientes como os antigos

As mulheres da minha família...
São resolutas como a certeza
E delicadas como a beleza

As mulheres da minha família...
São destemidas como a verdade
Imprescindíveis como a saudade

As mulheres da minha família...
São vanguardistas como o porvir
Estão num eterno devir

As mulheres da minha família...
São ardentes como os anelos
Feitas dos sonhos mais belos

As mulheres da minha família...
São transcendentes como a Cruz
Refulgem, e espalham luz!


POEMA TRISTE

a vida aconteceu
enquanto cultivava a arte
a vida aconteceu
agora, já vai caindo a tarde
e eu não sou mais eu: não sou mais todo, sou parte

a vida aconteceu
enquanto cultivava o riso
a vida aconteceu
no mais caótico improviso
e eu não sou mais eu, destarte

a vida aconteceu
               levou
               o amor que não pude dar-te

a vida aconteceu
               secou
               os mares de singrar-te
 


a vida aconteceu
enquanto cultivava flores
a vida aconteceu
agora, só vicejam as dores
e eu não sou mais eu: sou metade de um homem

a vida aconteceu
enquanto cultivava sonhos
a vida aconteceu
cerrando meus olhos tristonhos
e eu não sou mais eu, sou ontem

a vida aconteceu
               doeu
               agora a vida me consome

a vida aconteceu
               não sou mais eu
               sou o que não tem nome


PARA UMA ANJINHA DE BRONZE

Apaixonei-me por tua imagem, sôfrega e assustadamente.
Foi veloz e certeiro, uma ensolarada invasão do Amor.
(Culpo tua placidez angelical, suavidade e pundonor...)
A contrição que ocultas é paixão, meu coração pressente!
Dirão que estou louco, mas o amor não tem medida.
Desejo o teu bronze, e sonhas mergulhar no meu espírito.
E realizaremos mágica e inefavelmente este amor onírico.
E descerás à Terra, e ao Céu encetarei subida!
Dirão que é impossível, mas a paixão é imaginativa.
Vou ensinar-te o verbo, e me mostrarás o mundo do alto.
E morrerão de inveja, ao descobrirem, num sobressalto,
Que teu corpo é meu, e minha alma de ti ficou cativa!
E num infinito de realidades paralelas filhos teremos.
Que formarão nova raça de nobres e valentes guerreiros,
A fundar outras civilizações com seus ideais altaneiros...
É o esplendor deste amor que eu sonhei, e que ousaremos!



FRAGMENTOS POÉTICOS


O tempo passa e nos leva aos pedaços: um pouquinho do corpo, um pouquinho da mente, um pouquinho da alma

O tempo passa e nos leva aos pedaços: um pouquinho dos músculos, um pouquinho do coração, um pouquinho da memória

O tempo passa e nos leva aos pedaços: a criança, a lembrança, a esperança, também a coragem

A cada dia, a cada esquina, a cada susto o tempo passa e nos leva; no fim, somos poeira telúrica

A cada noite, no sofá da sala, no jantar com a família o tempo passa e nos leva; somos fugidias sombras

O tempo passa...
Não, ele corre!

O tempo corre com sua disposição atlética, com seu espírito olímpico, deixando-nos para trás, exaustos, com o coração saindo pela boca

O tempo corre com suas pernas titânicas, espalhando luzes e trevas no seu rastro, envolvendo-nos em seu implacável jogo de renovação e morte

O tempo corre...
Não, ele voa!

O tempo voa, mas somos nós quem caímos das alturas, caímos na real: é, o tempo voa, e nós, no máximo, corremos

É, o tempo voa, enquanto caímos na real: caímos nos braços do esquecimento, nos braços do sono, nos braços da noite, cujas vozes é o silêncio, íntimo companheiro de tudo que sonha

Ah, o tempo...
Se passasse mais devagar...
Ou se a gente vivesse mais e melhor...
Ou se a gente aprendesse mais rapidamente a viver, se a gente aprendesse mais rapidamente sobre o tempo, sobre os tempos da vida...

Ou se
Ao menos
A gente aprendesse a passar, a passar simplesmente
Como o tempo...

**

a moça apaixonou-se pela pessoa errada
e vivia a chorar estrelas com seus olhos noturnos
(outros orientavam-se no escuro com as estrelas que ela chorava, mas ela não se apercebia disso...)

falava sozinha imaginando seu amor abandonado ao sofá da sala, num comuníssimo domingo, lendo o jornal, a ouvi-la tagarelar e a rir-se dela; e compartilhava com este ser imaginário seus cotidianos dramas e alegrias, suas modestas aspirações e inspirações...

antes de dormir, tocava-se com lânguida sensualidade e despia-se num jogo erótico ilusório, sonhando o amante materializado em sua cama, viril mas delicado, a observá-la com paixão: mágica do amor romântico e da imaginação concupiscente...

a moça estava faminta de um corpo
a moça estava sedenta de uma alma
e foi assim que se deixou levar pelas metáforas de um jovem poeta – um poetaço, por quem se apaixonara, perdidamente, sem esperar ou querer, e esperou e quis e quis e esperou e esperou e quis, tudo baldadamente...

sóis e luas vieram e se foram
esperanças cresceram e minguaram
sazões dormiram e acordaram
e nada!

iludiu-se com os mal-entendidos da linguagem
iludiu-se com as miragens dos devaneios
iludiu-se com os calafrios dos desejos

até que, enfim, ela decidiu-se por não esperar mais a pessoa certa e se fez pessoa certa para alguém, e adorou fazer alguém feliz, e foi feliz também

às vezes, as coisas fazem mais sentido quando você desiste delas...


**


cortaram as árvores de dar sombra
sombras de dormir muito e gostosamente
e sonhar sonhos doces e frutíferos

cortaram as árvores de papear debaixo da copa
e filosofar axiomas, paradoxos, sofismas, quando a turma pensando pensa que é esperta só porque pensa, enquanto adora Baco e fala alto e se confunde

cortaram as árvores de marcar no tronco o nome da namorada: a real, a imaginada
cortaram as árvores de ouvir passarinho e fazer serenata

cortaram as árvores...

por outro lado, agora vejo melhor a vastidão do céu: céu de imaginar-se alado, céu de mergulhar nas nuvens, céu de sonhar com as estrelas, com outros mundos e o Paraíso, céu de Deus, de deuses e titãs, e também céu de me situar no mundo: somos tão pequenininhos...

a luz irradia-se mais livremente, o calor propaga-se, e restaura-se a saúde do sistema corpo/mente/espírito: remédio gratuito e efetivo

a luz do sol me acalma entrando no meu quarto
e o calor faz a gente se sentir mais vivo

perdi as árvores, mas me dourou o sol
perdi as árvores, mas me ampliou o céu
perdi as árvores, mas me curou a luz

muitas vezes, quando a gente perde é quando a gente mais ganha



MEDITABUNDO


Antes, quando o Homem era potência
Secreto devaneio do esfíngico autor
Do espaço/tempo, do ousado criador
Da matéria, da entropia, da consciência...
Antes, quando o Homem não sonhava
Quando ao esboço da ideia tremeluzia
E a obra do braço humano adormecia
Déspota solitário, Ele imperava...
Antes, quando era silêncio a palavra
Quando nada fabricava a humana lavra
Ele, a absoluta razão do universo
Toda a explicação: verso, anverso...
Agora, o Homem, invertendo tudo
Faz Deus, meditabundo, ficar mudo



APOCALIPSE


Depois, o silêncio reinou outra vez
Depois das paixões, o esquecimento
Depois da razão, a frigidez
De um universo triste, sem argumento
Depois da dúvida hamletiana
Que confrangia o homem
E da sentença descartiana
Apenas sono, apenas ontem
Só, Ele revê a tudo, sem saudade
O quanto fizera, apaixonadamente
Sonhando a filosofia, a arte, a ciência
Mas, num lapso, criara a iniquidade
Consumindo tudo, obstinadamente
E quis pôr fim à Sua imprevidência...



PAIXÃO!

Louco, marchava sobre os abismos da paixão!
Ah, imortais ardentes madrugadas de outrora
Quando o tempo só marcava a mesma hora
E, chamejantes, acendíamos a própria escuridão...
Possuía-te com afagos, e com sevícias!
Amava-te com desprezo, e com esmero!
Lançava-te às chamas, como um Nero
Àquelas das bacânticas delícias...
Afligi-me ainda este desejo incontrastável
E ainda morro de sede ao ver-te, meu Kalahari
Rendido, a teus liames me ataste, vil Mata-Hari
Refém de uma paixão inconfessável...
Quanta aflição germina e grassa no meu peito!
Se mais te desejo, é tua falta que hei de aspirar
Meu amor é só desespero, diz querendo calar
Quer nunca mais te ver, e ver-te nua no leito...



ESFINGE - II


Gente vulgar, meu ser pacifica-se no caos
Num tropel de emoções, num viajar-se em naus
Imortais, rumo ao fim e ao limiar de tudo
Sorvendo a existência num divagar mudo

Nasço, morro, renasço... Vivo em outra esfera
Sou lírio e sou hera, todo o amálgama que contém
Nossa natureza, e hoje sei que o conforto da certeza
Não engendra o traço original que tem a beleza

Minha humanidade quer expandir-se ao infinito
Na dubiedade das horas, ser o silêncio e o grito
É fogo que arde e na própria chama se extingue
É a loucura do algoz que ao próprio corpo cinde

Mentes timoratas prenunciam: perderás a alma!
Vendi-a ao nascer. Noite, tu és quem me acalma!
Nos abismos sem luz, sonho o inconsciente coletivo
E só e em silêncio é que me sinto vivo

A vida é um sonho com reflexos de realidade
É ir esgotando o círio de uma fugaz identidade
Mas, cientes de que adiante, outra vez, acordaremos
E maiores, mais puros, mais livres, prosseguiremos...



ESFINGE - I


Coração há que olvide tua beleza?
De rosa a desvirginar a primavera
De sol a inaugurar uma outra era
De novos sonhos e mais delicadeza

E alma há indiferente à tua tristeza?
Que confere ao teu olhar larga gravidade,
Como se lá houvesse sorumbática cidade
Onde reinasse noctívaga princesa

Teu olhar horrendo, de outra Medusa
Vai refazendo os corações humanos em pedra
E em tua plástica beleza só o malefício medra
Volúpia estéril, cristalizada na recusa

E teus gestos, que engendram sombras delirantes
Ora parecem pesadas: as memórias doídas?
Ora parecem abatidas: as paixões perdidas?
Malditas sombras, que te arrastam a vãos distantes

Bebe, triste e bela infanta de longínqua esfera
Um gole do Letes, sim, o esquecimento...
Antes que morras do tétrico sofrimento
Bebe um gole! Foge do mal que te lacera!



PARA SEMPRE NA MEMÓRIA DO TEMPO...


Para sempre na memória do tempo ficará escrito
Esse amor: sublime paixão de juventude
Que aguardou por teu gesto, mas tua atitude,
Soberba, indiferente, fê-lo ser proscrito...

Foste para onde não mais posso tocar-te ou ver-te:
Plaga distante, pátria de gênios, de bravos, de belas
Nesse altar, onde te adoro, só, rodeado de velas,
Tudo são ilusões de beijar-te e envolver-te...

Distante, embora estejas, ainda te sinto perto:
Sem te olhar te vejo, sem dizeres te escuto,
Se digo teu nome, choro desfeito em luto
Nessa paixão inútil que é viver deserto...

Incauto e otimista fui! Ah, fiquei sonhando o céu:
O paraíso recôndito que floresce em teu olhar,
Onde tudo esqueceria de simplesmente amar
Teu corpo palpitante sobre mim, lácteo véu...

Agridoce miragem no ermo da minha solidão!
Pudesse repousar o fio dos meus pensamentos
Outra vez em teu colo, encher-me de alentos
Perto de quem seria sereno e imortal guardião...



ROSA DO MAINZ

Verão imortal, de ardente temperatura
És sol a pino, e também o mar e suave brisa...
Tua paisagem minha memória escraviza
E lança a rede do amor que a captura
Teu corpo – Deus, teu corpo, um cataclismo
Derrubando os alicerces da minha razão
Indefeso, caio infinitamente em tua mão
Nutrindo este amor que obsessivamente cismo
Como te amo, minha princesa germânica!
Mais que o sol ama o azul no qual flutua
Mais que a estrela ama o infinito em que atua
Amo tua singela beleza, balsâmica
Rosa do Mainz, pudesse regar-te a formosura
Com o orvalho do meu amor primaveril
Intemerato, sincero, glorioso, febril
Em ti encontrar o elixir da minha cura...



LUZ


Irrefreavelmente vem galgando os espaços
Semeando a verdade, com seus lavradores braços

Nada se lhe subtrairá, porque é força onividente
Revelando e traduzindo o que se inferia ausente

Com fulgurantes poderes e infalíveis laços
Captura, com suave brandura, o negror dos cansaços

De tudo que é vivo, restaurando sua força imanente
Enquanto desvela a miríade de formas à gente

Vem curar-nos da fúria fratricida do aço
Ensinando a bem-aventurança e fortalecendo o abraço

Apaziguando o coração tumultuado de ódios ingentes
Propondo um porvir em comum e conciliações urgentes

Com ligeireza avança, de pezinhos descalços
Diafanamente, despida das sombras, nos ignotos terraços

Das vastas amplidões que nos habitam a mente
E nos secretos jardins da casa do Onisciente



PRECE

O homem, refém de uma lógica consumista
Desfere golpes matricidas contra a Terra
Persegue excessos megalomaníacos e erra
Ao eleger o iníquo paradigma capitalista
Violentada, a natureza adoece, sangra, berra
Contra esse modus vivendi pródigo, materialista
(que nos tem degenerado em cegueira a vista)
De destrutiva avidez, que nos sevicia e aferra
Vamos juntos, em silêncio, dar-nos as mãos
E redescobrir o sagrado elo que nos irmana
Homem e Terra. Vencer a doença, viver sãos
Para estarmos aqui como um só, como irmãos
Esquecidos de que um dia levamos esta vida insana
Baseada na força bruta, na força do ouro e da grana



NIILISMO


Nazareno redivivo, arquétipo da virtude
Fúlgida fortaleza do amor, da compaixão
Abraço conciliador, o perdão, a beatitude
Mas é alerta que ouço à sua pregação...
A pureza em divinal talhe, inabalável
Convertendo em abundância a escassez humana
Iluminada, é santa, sublime, imaculável
Mas seu condoído olhar já não me engana...
Certa vez, defrontei-me com a decantada verdade
Mas era uma profusão de mentiras a transviar o covarde
Com a miragem tragicômica dos ideais absolutos...
Deus? Mas somos falsos profetas consagrados ao vício!
Paz, justiça? Não é nossa miséria moral que faz este hospício?
A Revelação é que estamos sós e somos corruptos!



O ESFORÇO É O SAGRADO RITO
DA MINHA RELIGIÃO...


O esforço é o sagrado rito da minha religião
Quando se me revelam a divindade e a virtude
Sereno santuário em que revigoro a convicção
De dirimir a sede na taça da plenitude

O esforço é o campo onde semeio a vida
Para vê-la brotar numa flor transcendente
Ser-me-á leve grilhão a árdua lida
Se somar um pouco mais ao existente

O esforço é minha inspiração; mítica nau
Deslizando à fonte da minha esperança
Para que a imperfeição se redescubra cabal
E do Pai eu seja imagem e semelhança

Seja o esforço toda a ciência que conheça
Minha matemática, jurisprudência, filosofia
Com suas mãos alcançarei o que mereça
Tendo realizado a maior e a mais cara utopia

O esforço é clamor divino por superação
É desejo viril de superação da natureza
Vontade de refundar o mundo pela ação
E negando tudo, inventar outra certeza

O emprego da força física, corpórea e mental
É a gênese do progresso, motor da história
Ato que transforma em realidade o remoto ideal
E nos estimula com os ósculos da vitória



EXTINÇÃO II

Biologicamente, somos coveiros
Da própria linhagem. Deter-nos-á
Justamente a inteligência, ao despertar
Nossa super-raça imanente de guerreiros,
Que do espelho transporá a margem.
Desfeito o grilhão, arrebatar-nos-á o trono;
Então, sucumbiremos no inescrutável sono
Da extinção: derradeira humana viagem
E tatuagem apenas no corpo da história,
Que se desvanecerá também, como tudo
Que é grito selvagem a matéria, mas surdo
E a frigidez inorgânica seu zênite e glória!
(É um Cavalo de Tróia o conhecimento
Grávido da morte e do esquecimento...)



EXTINÇÃO I


O desejo humano de se sobrepor à natureza
Revigora-se com o beijo ambíguo da tecnologia:
Divindade pós-moderna, de obscura teologia
Cujo evangelho professa temerária certeza...
Porque traz como potência corte evolucionário
Semeando os futuros possíveis com rupturas
Abrindo feridas que não mais terão suturas
Apagando o verbete Humano do universal dicionário...
Subliminarmente, nossa inteligência visa a auto-extinção
Na iminência de ascensão de um novo paradigma genético
Alheio às noções do Bem e do Mal, imortal e cibernético...
Antifilosófica, antiestética, amoral, outra civilização
Surgirá. Patifaria humana, a religião também ruirá
Tudo que é sólido, disseram, se desmancha no ar...



RETORNO


Da abscôndita noite oceânica a vida veio
Grávida do propósito evolutivo: a consciência
Que é benção e castigo, liberdade e penitência
A verter o acre-doce leite do seu seio...
O desígnio do nosso universo é a civilização humana
Ainda que a golpeemos com a pesada mão fratricida
Mas haverá a hora de evitarmos o caminho suicida
E à refulgente vereda seguirmos, que irmana...
Na intuitiva antevisão do porvir, somos completos
Nossos corpos e mentes transbordam, repletos
Auge primaveril da evolução, reflexo do perfeito...
Não obstante a glória (desejo ardente, a divindade
Nem por isso existe: é horror do escuro, é vaidade)
À noite tornamos: íntimo e sepulcral leito...



A HORA DO LOBO


Vício, há tempo nos dedicamos ao ilícito hediondo
E nos precipícios noturnos saltamos, alienados
Sucumbindo em opiáceos delírios, paralisados
Mil horrores cortinas de sombras nos impondo...
Morte, sei que me cobiça tua mórbida luxúria
Que maquinas com o Tempo, velhaco libertino
Meu fim – que qualquer um é teu desde menino
Mas, como Sísifo, hei de enganar-te a fúria...
E os gentis amigos Mal-Estar, Necessidade, Desespero
Arautos do ocaso, acolhem-me em recanto hospitaleiro
- amizades verdadeiras e luminares esperanças de futuro...
Ah, o completo desperdício de sonhos, ideias, ideais...
Entre brutos, ser bruto! Sobrevenham disposições infernais
Lobo uivando à selva humana, e sedento: eu auguro!



O GRANDE IRMÃO NEGRO EM SUA SOBERBA ARROGANTE ...

O grande irmão negro em sua soberba arrogante!
É a sua civilização: excessos luxuriosos, imorais...
Onde tiranicamente legisla, segundo lógica infante
Que assola a Terra com a ilusão de sempre querer mais...
Enquanto a diáfana irmã escasseia; ela, a geratriz da vida!
Poluem suas fontes com industriais resíduos radioativos
E todos os dias a morte salta das sombras e nos convida
A aceitar severa aridez como a sina dos seres vivos...
Essa engrenagem voraz, o capitalismo hodierno
Não se sabe bem: representação do céu ou do inferno?
Onde o exagero burlesco é evidente sintoma de falta...
Na insustentavelmente atroz e insidiosa guerra pelo lucro
A extinção de toda riqueza natural aí tem seu fulcro;
mas a consciência crítica germinará na mente incauta!



URGE


Urge regar a luz
para que desabroche em áureos dias
que trarão amplos céus azuis
e outras divinais alegrias

Urge cultivar a esperança
para que se realize num vasto pomar
com frutos até onde a vista alcança:
paz, amor, sonhos, lar

Urge deter do medo
o discurso receoso e infame
ferozmente, pôr em riste o dedo
na cara da senil e fatal Madame

Em uníssono, urge afiar o grito
desafiando o cinismo dos abastados
fazendo do contestar um novo rito
que nos faça lembrar dos deserdados

Urge com fúria levantar o braço
como se avisando: haverá guerra
e propagar o retinir do aço
para depurar dos maus a Terra

Urge da dúvida escarnecer
acovardar-se só intimamente
e deixar irremovível certeza romper
os limites, esgarçando-os tenazmente

Urge ouvir cantar a manhã
sobre o silêncio que gera a noite
libertando os filhos do amanhã
da vil miséria, do vil açoite



DESENCANTO


Sonhos a perder de vista... Ilusões já perdidas!
As máscaras da vida, desfeitas, uma a uma...
E seu rosto é informe, sem esperança alguma
Tais as tragédias que nele podem ser lidas
Tanto sonhei com a paz perpétua e o bem
Que éramos capazes de expelir o ódio do peito
E a vaidade – afago do demônio, sem atrativo e efeito
Esvairia ante uma filosofia que nos conduzisse além...
Ah, os dias de ventura, de primaveris pensamentos
Que se revelavam em nobres ações de fé e coragem
Mas o inverno irrompeu, vindo com ele a voragem
Dum fatal desencanto: somos feitos dos vis elementos!
A triste verdade... não liberta, nem é bela ou boa
Espelho refletindo o cruel inimigo: a gente próprio
Como ir superando o vício se nosso sangue é o ópio
Que nos embriaga, macula, transvia, atordoa?!



NO REDEMOINHO DA MEMÓRIA TUDO DESVANECE... 

No redemoinho da memória tudo desvanece
Recordações tornam-se senis, moribundas
Sufocando em meio a escuridões profundas
Entre os abismos que o passar do tempo tece
Porque nas retinas o mundo descolore e evapora
E são fugazes delírios imagéticos o momento
O poeta vai cerzindo versos cheios de lamento
Sobre o insustentável desejo que nos devora
Desejo de reter o sabor que se dissolve
Ou degustar nova sensação, vária experiência
Sucedendo as que decaíram na consciência:
Recorrente drama que a gente não resolve!
Nessa busca impossível, delirante, inútil
- cão mordendo o rabo, esfaimado e louco
Quanto mais tem, almeja mais um pouco
E aferra-se à ilusão e cobiça o fútil!



LEÃO!
Agita-se em tua alma viva intuição
Pensas com lucidez, ages com presteza
Superar desafios para ti é uma certeza
Forjado que foste no ímpeto da ação
A férrea vontade é a tua fortaleza
Incontrastáveis tua fé e obstinação
Que atiçam teu voraz apetite de leão:
Num gesto açambarcas toda a natureza!
Enfrentas e pões ao chão o obstáculo
- quem crê não cansa ou se engana
E faz da vida um multifário espetáculo
O livre-arbítrio da condição humana
É teu evangelho, que ensina a fé inabalável:
Sim, todo sonho é possível e realizável!



ENCONTRO


hoje é dia de morrer!
morrer! morrer! morrer!
o irremediável, inapelável dia da nossa morte
todo santo dia, dia de morrer: esvair-se, sufocar-se, desmembrar-se, extinguir-se, ser inescapavelmente desfeito em nada, em noite, em silêncio, em cinzas, poeira estelar...
ó como dói a consciência, meu deus, ante a inexorabilidade do fato, tragicomicamente o único que é indubitável na vida...

no entanto, morrer é realmente necessário! é realmente preciso morrer! repito: é realmente preciso morrer! viver não é preciso

a morte é sempre uma revolução: a chance de que tudo continue, diferentemente

que tudo morra, então!
que morramos todos (e que vá na frente os piores de nós...)
nada é realmente fundamental que não mereça a morte;
a morte, ela sim, fundamental, gloriosa, soberba!

você merece morrer, eu mereço morrer, a civilização humana, deus, e as demais quinquilharias que criamos para nos entreter, porque só a energia deve permanecer (apenas a energia é perenal, de uma constância inconsciente)

todo momento é o derradeiro para alguém: você? eu?
você acorda feliz, sai esperançoso, cheio de paixão, dobra a esquina a sorrir, está com a mente transbordando sonhos e desejos, e eis que se depara com a morte, com a pálida face da morte, com o bafo quente da morte, com a mão pesada da morte, que ficou ali se fingindo de morta, todo esse tempo, a esperar justo você, que se achava merecedor de tantas coisas sublimes... e que não era!

mas morrer nada tem a ver com justiça, humana ou divina; tem a ver com... morrer!! Afinal, tudo que é vivo, perece, e merece tal sorte, porquanto para que tudo possa evoluir, tudo deve extinguir-se

todo dia é o dia perfeito para encontrar-se com a morte, tomar um chá com a morte, comer bolachas com a morte, papear futilidades com a morte...
com quem será o encontro hoje?


O HOMEM QUE NÃO ESTAVA LÁ
a casa parece enorme; a cada passo, se estendem os cômodos, se multiplicam os metros, e os vazios se aceleram, como num universo particular; a solidão infinda-se, dilacerando-me lentamente, humilhando minha humanidade; uma imensidão de impossibilidades de afeto, diálogo, amor, esperança
falo fingindo a presença de outra pessoa, falo para ouvir-me, para lembrar que sou gente; a solidão é um sol que dá vida, expande as capacidades imanentes, abre os olhos para uma singular visão das coisas, mas, exagerada, entorpece e exaure, resseca o coração, confunde a mente, limita o espírito
percorro um milhão de quilômetros de pensamentos no espaço de um metro quadrado, quisera percorrer um milhão de passos sem pensar em nada, fruindo o momento
solidão tumular, silêncio cortante, pensamentos tortuosos
existo realmente ou apenas vestígio de algo extinto, sombra do passado? eles existem ou são reflexos de alguma coisa, não a coisa, o pó da coisa, o rastro fugidio da coisa? e se existimos, o fato de que tudo será extinto e esquecido não nos faz mortos e esquecidos desde já, como fantasmas errantes? alívio nada ficar registrado (que assim permitam as leis da física)
bebo água, sem água a gente morre, sem gente por perto morremos também, queria beber gente todo dia, como se fosse água, queria respirar gente como se fosse ar, respirar-se é bom, mas insuficiente, vai-nos intoxicando, precisamos de pontos de vista diferentes, de dialética e oxitocina
entro em meu quarto, meu palco e minha tumba, por onde andam meus sonhos e esperanças? murcharam como eu através das décadas; de timidez ando perdendo a vida, me disseram, não que a vida se importe, não que alguém se importe, eu deveria me importar, mas alquebrado demais para me importar; ouvindo música baixinho, passando despercebido mais um dia, um alegre e festivo, talvez pela minha falta; ouvindo música baixinho, e dançando com alguém imaginário, o amor dos meus 15 anos
a casa parece enorme
uma ausência de tudo





OCORRE A MUITOS ALIMENTAR...


Ocorre a muitos alimentar
Doridos rancores que os consomem
O que a tal liturgia se entregar
Nunca se lhe resgatará o Homem:

Sanguinolenta fera subterrânea
Brandindo seu ódio como se fosse aço
Pregando uma guerra extemporânea
Até que a trôpega civilização perca o passo

Muitos acabam por concordar
Com os falsos profetas que nos dividem
E com perfídias infectam o ar
No olhar imprimem a vertigem:

Almas aviltadas, na mendicância
Da divindade imanente apartadas
No noctífero templo da ignorância
Louvando ao engano, com suas fés compradas

Muitos se ocupam de perpetrar
Nefastos crimes contra o mundo
Fratricidas, sedentos de sangrar
A inocência com golpear furibundo:

Escravos da cobiça e da rapina
Com uma fome de ouro insaciável
Que mitigam com a ânsia assassina
De acumular tesouro inumerável

Muitos se ocupam de investir
O desprezo que nutrem contra as gentes;
Com seus capitães tramam impedir
Das multidões as reações urgentes:

Plutocracia célere ao decretar
A ambiguidade da condição humana
Mas, irmanados haveremos de provar
Que tal sofisma já não engana!



NOVA ROMA (Democracia a la EUA)

A nova Roma avança sobre o mundo
Espalhando o veneno da sua moral falaciosa:
Condena a guerra, mas faz uma guerra odiosa
Catequizando para um deus iracundo...
A nova Roma avança sobre a liberdade
Sob o falso argumento de defendê-la:
Torturam a verdade, até invertê-la
Para que seus crimes tenham a feição de santidade...
Nas horas, entanto, o tempo elabora a mudança
Muda o curso das eras, como o do vento
Nada detém uma ideia quando avança:
A de que nada impedirá o nosso intento
Haveremos de alcançar o que buscamos,
Pois impérios se desfazem ao que sonhamos!



A UM GUERREIRO NA CRUZ

Devora-o a morte; o corpo grita-lhe, desfeito, machucado
O guerreiro à cruz abandona-se. “Pai, que sorte maldita...”
Chora; o perdão e o silêncio suplica; olvidar a desdita:
A memória do sangue, o gládio, e seu coração torturado...
E a multidão nem cogita que é também ela ali castigada
Não vê que a dor deste homem é igual a sua, cotidiana
E que levantou-se por ela, com fé, esperança e gana
Mas estranha a si mesma olha e não se vê justiçada...
O moribundo já ele pressente que ali morrem milhões
Legiões de soldados que marchariam, mas vão transigir
Que o medo em seus corações indolentes os fará desistir...
Deserto e mudo morre nosso herói, distante das canções
D'aurora. Esquecido de que livre nasceu, sonhou, foi feliz
Até que a vida se lhe marcasse na carne como brutal cicatriz!



BELEZA!

A beleza, mistério profundo, tem uma face dividida:
Encantaria o mundo com perfeição magnífica, celestial;
É, no entanto, controvertido e contraintuitivo seu ideal;
Aviva como sol, e mata como mal curada ferida!
Nela acomodam-se as partes de uma contraditória unidade.
Uma ideia singela raiz de mil interpretações dissonantes:
A flama dos prazeres carnais nas ígneas bocas amantes
E os excessos burlescos sonhados por nossa fútil vaidade!
Beleza maior: a condição humana; ascensão e queda conjugadas
Nosso sonho de eternidade, que desvanece a olhos vistos;
A sublime glória e o atroz suplício de cotidianos Cristos!
E fatalmente belo é o desespero das utopias mutiladas...
Ecoam melodias inebriantes dos sentimentos mais nefastos:
A vingança, o ódio, o vício, os delírios de cotidianos Faustos!



JESUS!


Jesus há de me estender Seu braço
E me conduzir a Seu templo de luz
Onde esquecerei o peso da cruz
Que me castigou passo a passo

Jesus, meu Salvador, estou aqui aos pés do Senhor

Jesus há de me curar o câncer do rancor
Com Suas infinitas glória e humildade
Que fundam a paz e o amor na humanidade
Antídotos ao desespero e à dor

Jesus, meu Salvador, estou aqui aos pés do Senhor

Jesus há de me salvar, novamente
Eu que blasfemei contra Ele impropérios
E corrompi-me aos mundanos impérios
Até meu coração rebentar doente...

Jesus, meu Salvador, estou aqui aos pés do Senhor

Porque descera dos Céus não para julgar
Mas redimir os pecadores das faltas
E lhes nutrir com as Verdades mais altas
Ofertando-lhes Seu coração como lar!

Jesus, meu Salvador, estou aqui aos pés do Senhor



NÍNIVE


Tens o mistério de uma antiga cidade. Nele me perco
Porque teus olhares são como os becos de um labirinto
Onde se tento me encontrar só mais perdido me sinto
Ébrio de teu beijo, preso em tuas mãos, que é meu cerco
Serei conduzido à loucura em teu calor de estio
Tudo destruo e crio nas asas desse desejo onipotente
Mas se corres a abraçar o mundo, este de mim fica ausente
Tela sem traço e sem cor, lançado num imenso vazio
Eu quis um dia saber como era, morrer de amor
Pois são teus olhos, duas luas negras, que me matam
Mas teus lábios, sensuais, ardentes, me resgatam
Quero ser passarinho para espalhar o pólen da tua flor
Possuir-te inteira, e ser mais feliz, sobrepujando abrolhos
Mas só me queres não mais que escravo destes teus olhos



SONHO ROUBADO


O céu a pequena mira
Que diverso lhe parece
Com medo, faz uma prece
E cai! Porque tudo gira
Estranhos pássaros de aço
Roubam-lhe o céu, que era azul
Também os viram lá em Cabul
Lançando estrelas no espaço:
Estrelas de aço, cadentes
Pobrezinha, tão triste e pouca
Mataram-lhe o pai, mamãe está louca...
Estrelas de aço, candentes
Uma lógica irracional seguindo
Ai, o sonho da pequena é findo!



IMPÉRIO DOS SONHOS


Quem é o estranho no espelho que ao meu rosto assume?
Fantasticamente, numa infernal amnésia, há dias me desconheço:
Minha mente exilada num corpo estrangeiro, no qual envelheço,
E se mais me persigno mais distante me acho do lume...
É de uma descomunal ausência de mim o mal que padeço
Como se este que sou cotidianamente tivesse outro aspecto
Mas num mercado de corpos tivesse comprado este infecto
E numa rejeição total da matéria, na ideia apenas me reconheço
É como se, ao mirar-me no reverso do espelho, me não pertencesse
E após contemplar-me, me fugisse o meu rosto e eu me esquecesse
Existindo em outro lugar, mas nunca naquele em que posto
E desfaço-me neste labirinto de ilusões que me é tragicamente imposto
Como se, pioneiramente, houvessem gravado minha mente noutro ser
Ou, sonhando-se livre, não mais desejasse um corpo a que pertencer!


REINVENTAR-SE


Caem as cortinas de uma era
Os paradigmas estão todos exauridos
E reinventar-se é a vontade mais sincera
Pro porvir não repetir os tempos idos

Fecham-se os portões desse museu
Que guardou tantos anos de dores e alegrias
De uma miríade de trajetos que sou eu:
Horas, desoras; acertos e arriscadas vias...

Vedam-se as câmaras desse mausoléu
Separando o que é vida e o que é morte
As estrelas de outrora não brilham mais no céu
Só as sementes do amanhã serão meu norte

É-me impossível permanecer cristalizado
Nesses grilhões de oníricas imagens de antanho
Sonho com as luzes da manhã viver casado
Sonho a vida ardente, e sem tamanho

Quero a vida na forma dos meus devaneios
Esgarçando limites, rompendo estruturas
Explodindo no âmago, e por todos os meios
De amplos espaços e portas sem fechaduras

Anseio pelo corpo da vida, já!
Sobre o meu deitado, ou justaposto
Para juntos nos encontrarmos lá
Onde se torna uno o composto!




PARADOXO IMPÕE-SE À MENTE ESCLARECIDA...


Paradoxo impõe-se à mente esclarecida:
Afligi-se insatisfeita porque mais almeja
A inépcia aceita entanto contra o que peleja
Cabal só o Mistério, que admira embevecida
Dá pela escassez dos meios que anseia
E que lhe embarga lida, estro, potência
Mas o que pode acalma-lhe a consciência
- um sopro leva a primavera e a semeia!
Percepção contraditória latente no pensador
Em sua busca irrefreável (gáudio e perdição):
Esforço ambicioso e humílimo louvor...
Castigo de Tântalo que assume em louvação:
Geômetra do Tempo-Espaço, bendigo a ânsia
E os óbices que me impões com tal constância!



LA PIETÀ

Castigado, a Verdade expirando no colo da Virtude
Ressurgirá, entanto: promessa aos corações fatigados
Ele, o santo caminho (a miséria não mais nos aturde)
Inexpugnável refúgio dos sofredores e desgarrados
Paz eterna: suas essências, a suave brisa da infinitude
Serenando inúteis fogueiras, paixões, ideais desviados
Reencontro inefável: mãe e filho na imortal quietude
Dos que engendrados na Luz foram à Luz consagrados
Sentimento inexcedível levando-nos à celestial altitude
Onde quedamos em êxtase com seus semblantes mitigados
Tão puros que nenhuma visão do mal jamais nos ilude
Maria, perpétuo e fúlgido dia de verões abençoados
Acalentando nosso intemerato sol; que Ele nos ajude
A plantar e colher virtudes, sonhar e viver irmanados


PERFEIÇÃO 

O afã por perfeição, o desejo pela ideia absoluta,
Fascina, intriga a razão, a põe refém e mais culta.
Vai-nos envolvendo, feito teia, feito canto de sereia,
Se ingenuamente cremos na falácia que a permeia...
Busca atroz, colérica, inextinguível
Revelando-se quase sempre inexequível:
A diferença entre a potência e o ato
Entre o onipotente sonho e o fato...
Indômita ideia, fugidia, cigana,
Desdenhando da condição humana,
Repleta de uma natural lassidão...
Sopro divino acalentando o coração.
Esforço sem par sonhando a delicadeza.
Rosa de chumbo! Hedionda beleza!