Quando o encontrei, estava transtornado. Via-se isso na face afogueada, nos olhos esbugalhados, no lábio inferior que tremia um pouco até. Também, havia horas que se enchia de cachaça, repassando o infortúnio detalhe a detalhe. Nunca o vira num tal estado. Justo ele, alma de bem com a vida, pouquíssimas responsabilidades, anarquista muito bem sucedido no propósito de não ser fiel a coisa alguma senão a si mesmo, puro instinto, tão leve e errante quanto um flato ao vento. E o que sucedera? Uma mulher, claro, que é o que sucede, cedo ou tarde, para o bem ou para o mal, na vida de qualquer homem. Sempre fora mulherengo e elas viviam correndo atrás dele; bem-apessoado, tem dinheiro no banco, apesar de ser apenas medianamente inteligente e de ter um senso de humor desses que não se entende muito bem. Com o mulheril sua filosofia de vida era nunca ser fiel nem exigir delas que o fossem. Mas com a Maninha a coisa era um pouco diferente. Desde o começo ela mexera com suas entranhas de uma forma que não imaginaria em outros tempos. Algo nela o tocara profundamente e agora ele se servia dela como quem se serve de uma droga poderosa que causa dependência física, psíquica e moral. Estava verdadeiramente afeiçoado à pequena. E como eu disse, J.P nunca fora disso, muito pelo contrário, menoscabava o amor romântico em todas suas possíveis manifestações. Na sua cabecinha sensual e pueril tudo se resumia a sexo, o mundo seria basicamente a penetração de falos em vaginas. Enfim, o caso é que eles viviam num relacionamento aberto e até onde vigorasse a total ignorância do que cada um fazia nas horas de ausência um do outro, estava tudo bem, estava tudo certo. Entanto, dias atrás ele achou o diário da pequena sobre a cama e não resistiu. Como um bom malandro pouquíssimo afeito às questões morais e éticas, mergulhou fundo nas páginas do livrinho para incontinenti mergulhar fundo na melancolia do desapontamento. Descobriu lá que Maninha tinha transado simplesmente com mais de duas dezenas de picas nos últimos doze meses, doses cavalares de sexo na veia, overdose mesmo, coisa da pesada, hardcore. Aquilo o afetou sobremaneira porque ele sequer se apercebera da quantidade de vezes que ela se satisfizera fora de casa. Mas o que mais o indignava é que não obstante todo seu empenho, contumaz e cotidiano, ele só se metera em doze bocetinhas no mesmo período (um terço das quais, pagando). Era ultrajante, mesmo insuportável quando descobria uma mulher que se esbaldava na luxúria muito mais do que ele próprio conseguia; justo ele que se considerava o maior dos putanheiros da Terra Brasilis. E foi para me contar esse causo que me chamou para beber consigo naquele dia...
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Me apaixonei perdidamente, sussurrou desfalecente. E seu marido, meu chefe, mal dera alguns passos em direção ao mictório. Tocou-me languidamente as coxas, deslizou as mãos pelas mesmas, depois as recolheu, insistiu outra vez, ficou confusa, fez cara de boba, cara de sexy, cara de choro, cara de adolescente apaixonada. Minha aflição só aumentava, enquanto assistia à insólita cena. Só queria sumir dali, o escândalo que não ia ser isso, e de quebra minha demissão, vexatória, pública, irrevogável; ela é o supra-sumo das formas femininas, mas nesse momento meu contracheque é muito mais importante; mas devo admitir: em outras tantas ocasiões, a mulher do próximo mereceu de mim a mais completa prioridade! Bom, não sei como, ela se conteve, vestiu a comuníssima máscara da satisfação e pôs-se calada. Ele estranhou o comportamento um pouco indiferente dela, fez piada com isso, culpou a menorréia, e continuou bebericando, discorrendo sobre amenidades, no que o acompanhei, louco para ir-me embora.
Mais tarde, voltando das compras, já entrando no meu apartamento, observei qualquer coisa na soleira da porta. Eram meia dúzia de cartões, com declarações de amor fartamente açucaradas, enjoativamente infantis, como todas as cartas de amor de todos os chatíssimos amantes dos mais variegados quadrantes do mundo; enfim, Juliana entregava-se de corpo e alma no ardente e pecaminoso leito da luxúria; a luxúria tem nome, o meu: JP, também conhecido entre os meus como o lobo da estepe; animal pouquíssimo dado a romantismos, insensível como os meus congêneres da Idade da Pedra Lascada, que sofre de horror à intimidade e absolutamente incapaz de se prender a uma alma que seja, nem que seja à Divina, agrilhoado à redentora idéia da infidelidade a todos as coisas, idéias e seres vivos. Meus detratores me chamam de porra-louca, desvairado, anarquista sem caráter, no que provavelmente estão certos. Mas não vamos dissecar minha personalidade nesse momento...
Você deve estar se perguntando como por mim se apaixonara tão voraz e terminantemente a mulher do meu chefinho. Bom, então é necessário que eu faça uma inconfidência: é óbvio que ela e eu transamos, e bastante! Aliás, transar é um eufemismo: fodemos mesmo, doses cavalares de sexo! Foram pelo menos dez fodas, antológicas, inesquecíveis, geralmente quando viajávamos à casa de praia do Mauro (o chefe e marido corno), para resolvermos assuntos de trabalho. Como ninguém é mais criança por aí, vou dar com a língua nos dentes: sucede que cada reuniãozinha dessas degringola amiúde em cocaína e porres homéricos; e com a censura da consciência de guarda baixa um dos meus golpes mais mortais e freqüentes é seduzir a mulher do próximo, seja quem for o infeliz, até meu chefe! Foi em tais circunstâncias que conheci os orifícios mais íntimos da Juliana. E deix´eu falar em alto e bom som: vale totalmente o risco de se levar um balaço no meio das fuças. Olhe, veja bem, não sei quem foi o idiota que inventou essa estória de mulher ter dono: mulher não tem dono, não! E isso não é nenhum arroubo feminista tardio da minha pseudo-intelectualidade mal estruturada; na minha abalizada opinião de vagabundo fundamental, ninguém é de ninguém ou, se preferir, todo mundo come todo mundo! Essa, meu irmão, é a nascitura moral sexual do século XXI. Mas deixemos a filosofice de lado e terminemos a estória: ela jurou de pés juntos e as mãos espalmadas que o cara não vinha fazendo o serviço direito havia dois anos; bom, talvez essa tenha sido a desculpa que ela arranjou para satisfazer seus instintos primevos sem culpa...
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As primeiras aventuras sexuais de JP ainda são flashes vivos reluzindo em seus voluptuosos olhinhos (molhados de concupiscência, como gostava de dizer um antigo “affair”), tão nítidos e envolventes quanto uma projeção no escurinho do cinema (e não é um cinema particular a tela da memória onde passamos a trama acre-doce das nossas vidas?): impúbere ainda assistia as tias saracoteando, seminuas, ancas e bundas e peitos balouçando impunemente, exibindo-se umas pras outras, pra si mesmas, na frente do espelho, e também pra ele, expectador privilegiado, que quietinho ali no canto do quarto, mudo e excitado, se lançava àquele novo universo com todas as fibras do seu ser, enquanto as loucas ninfômanas lhe faziam caretas, acariciavam-se, apaixonadas por si mesmas, e morriam de delícias, enlevadas com a situação (inadequada para a moral conservadora da maioria das famílias, mas não para a sua, covil de anarquistas, adictos e porras-loucas); e se mostravam a ele costumeiramente ao trocarem as roupas íntimas ou quando saíam do banho da tarde ou ainda ao abaixarem a calcinha no bidê, revelando-lhe aquele objeto do desejo de meia humanidade.
Se com as despudoradas tias fora apresentado à anatomia feminina, suas reentrâncias, saliências, círculos e triângulos imperfeitos, com as primas mais velhas, já cheias de sinuosos relevos, e também com as tabulares e curiosas priminhas da sua idade ele pode sentir os ígneos prazeres dos primeiros toques, carícias, apalpadelas; da esfregação das partes baixas umas nas outras; dos suspirares nos cantos de parede e pelas madrugadas, em camas compartilhadas (quando montavam uns nos outros como se treinassem o ato reprodutivo); dos lascivos odores e líquidos corporais a se espraiar... Desde aí pode mostrar a qualidade do seu estro e a paixão ruidosa, ardente e incontrolável que nutriria pela fêmea da espécie humana pelo resto da sua longa, impudente e imprudente vida.
Essas lembranças vivas desassossegam o coração do jovem garanhão até hoje. Ainda que tudo tenha se passado há bastante tempo (e com tantas mulheres experimentadas ao longo da sua viril juventude) ele ainda sonha com as curvilíneas e gastronômicas priminhas, hoje a transluzir o viço e a galhardia dos vinte e poucos anos; sonha com mostrar-lhes a expertise adquirida (como mudou desde aquela pré-adolescência confusa, tímida, franzina...). Nele ficou cravado, parece-lhe que indelevelmente, um desejo incoercível, uma tensão no ar (“o ronronar das antenas invisíveis” de que fala o poeta), uma fascinação por cada uma daquelas personagens do seu lúbrico passado. Sim, sempre se lembrava delas, teso, afogueado, bem como das joviais amiguinhas que amiúde as acompanhavam, meninotas com seus 11, 12 anos, outras, mocinhas beirando os 14, 15, as primeiras fêmeas da espécie a devassar-lhe a nudez e a admirar seu órgão sexual excitado! Como era bom tomar banho com elas, naquelas tardes de férias, voltando das praias, nas casas alugadas pela família, quando a turma toda se reunia; vê-las investigando a própria nudez com espelhos, ou brincando brincadeiras adultas, quando mostravam suas intimidades uns aos outros... Era um êxtase lembrar-se dos corpos nus, debaixo do chuveiro, o seu, ficando maior, mais espesso, ano a ano, os delas mudando as formas, os volumes, dando a antever as mulheres graciosamente desenhadas pelo lápis do divino prestes a sair daquele envoltório ainda mirrado e simplório. Anos passaram-se assim! Gloriosos e saborosos anos, anos imortais! Dos 9 aos 14, ele esbaldou-se nessa orgia sem pecado, nessa libidinagem sem conseqüências....
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JP percebeu que podia ouvir com alguma clareza os ruídos que suas amiguinhas faziam, no vestiário ao lado, antes e depois das aulas de educação física, e pôs-se a maquinar que poderia haver, quem sabe – seria bom demais para ser verdade?, um duto de ar que estivesse levando os sons de um vestiário ao outro; começou a procurar, sem chamar atenção, algum possível ponto de ligação entre os dois ambientes; e não é que na parte dos chuveiros havia um duto, estreitinho, muito ao alto, que parecia ligá-los? Ficou arquitetando planos para poder subir até lá, talvez um corpo pequeno e mirrado como o seu coubesse no duto; analisou a parede para ver se, de alguma forma, poderia subir por ela, e após alguns segundos de investigação, concluiu, decepcionado, que era impossível chegar até lá, bem como passar por aquele duto, e sabe-se lá o que teria depois dele, talvez apenas a visão do logradouro...
Mas vejam o que é a mão (ardilosa? benfazeja?) do destino: um mês depois, JP estava na aula de educação física e ficou com vontade de ir ao banheiro, pediu a permissão, foi; no momento em que entrava no vestiário, dois homens estavam saindo e disseram-lhe: “A gente está fazendo uma pequena reforma nos chuveiros, por isso está cheio de material espalhado pelo chão, mas voltamos logo, em vinte minutinhos...” JP deu de ombros, foi até a latrina, fez um longo xixi, e quando voltava à aula, o bichinho da curiosidade lhe picou, e ele voltou atrás para dar uma singela olhadinha na reforma; pois bem, estava lá, magnífica, providencial, do alto dos seus vários metros, uma escada, a escada que ele tanto sonhara um mês antes, a própria mão de Deus a havia posto lá, para que ele pudesse, enfim, ter o seu momento de iluminação, a sua visão do paraíso; incontinenti, arrastou-a cuidadosamente para o lugar onde identificara o suposto duto de ar, e subiu cheio de ansiedade; o duto era estreito e devia ter uns três metros de comprimento, mas ouvia-se claramente os ruídos que as meninas do terceiro ano faziam, voltando da aula de educação física; naquela classe, muitas garotas eram amigas de sua irmã, e algumas eram paqueras que frequentavam a sua casa, além da L., o amor de sua juventude; isso o motivou deveras; sim, faria isso: meteu-se sem muito pensar no duto – só coube ali por causa dos seus 14 anos e seus poucos quilos, e foi arrastando-se devagar e silenciosamente, tinha 15 minutos até a dupla de estraga prazeres voltar; é, ele tinha razão, o duto ligava os dois ambientes: começava a ver parte do outro vestiário; logo depois, já com a cabeça quase no limite do duto, viu as garotas nuas, tomando banho, e viu a sua L., que parecia despir-se sensualmente para ele, peça após peça da indumentária, o sutiã, o jeans, a calcinha... ele quase perdeu os sentidos! JP ficou ali por uns quinze minutos, até a última garota deixar o recinto. Quando tentou voltar, percebeu que não tinha como manobrar seu corpo, não tinha mais aquela adrenalina, os braços estavam praticamente presos, e ele não poderia voltar; inicialmente, entrou em pânico, mas controlou-se, sabia que os caras voltariam logo; esperou-os e eles chegaram um pouco depois; gritou por socorro, bateu as pernas, os caras o viram e o retiraram de lá, às gargalhadas, claro; já no chão, sem ter o que dizer, pediu pelo amor de Deus para que não contassem nada; os dois sujeitos fecharam a cara para fazer-lhe medo, como se dissessem que o denunciariam, mas no fim conseguiram o que queriam, dinheiro: cem pratas na mão de cada um; e o assunto, pelo menos para o grande público findou-se por aí; mas na cabecinha sensual de JP aquelas imagens – verdadeiras delícias do paraíso perdido, levam-no a vertiginosos momentos de delírio ainda hoje...
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JP passou horas aprumando o espírito com meditação, malhando os músculos com halteres emprestados à um amigo, customizando a indumentária, engalanando-se para atrair as fêmeas mais susceptíveis e desinformadas sobre seu caráter, enfim, fazendo tudo o que lhe era possível para obter uma ótima performance na festança de logo mais. Tinha a expectativa de copular bastante, e com muitas mulheres (esta era a sua expectativa usual, dado os ótimos resultados de suas séries históricas a respeito do assunto); e quem sabe não fosse seu dia de sorte, indo parar na cama com duas ao mesmo tempo, talvez as gêmeas I. e B., em que punha os olhos esfomeados há tempos, desde a nem tão inocente assim época de colégio...
Acoplou-se ao BMW de quinhentos mil reais, e pisou fundo. À caminho do regozijo, parou num quase arrabalde para comprar baseado, pó, ecstasy, tudo que fosse ilícito e possível de ser comprado e iniciou a viagem ali mesmo, como que calibrando a máquina; transou no banco de trás com suas putinhas preferenciais, enrijecido com os comprimidos azuis (estava sempre preparado para ocasiões especiais); e teve que subornar o merdinha de um guarda de trânsito que teve a ousadia de pará-lo numa blitz: molhou-lhe a mão com 300 pratas e foi-se embora, cantando pneu e mostrando o dedo para a patuleia...
Quando se apresentou na milionária cobertura do Flávio, o anfitrião da festa (o dono da festa era o JP, como de costume), o nosso (anti-)herói já havia fumado dois baseados, cheirado cocaína, ingerido viagra, e bebido whisky. Para a sorte dele o putanheiro tem um coração de aço. É porque, além dos bons genes, o tema saúde não era de todo negligenciado. Quando não sucumbia à perdição, até que acordava cedo, alimentava-se bem, fazia exercícios com certa regularidade. Mas ele sempre quisera conhecer os dois lados de tudo, as duas faces da moeda, estava gravado no ADN dele a busca, e assim mergulhava tanto no calor do dia, quanto nos insondáveis mistérios da noite, profunda, perigosa, e muitas vezes inadvertidamente...
Durante a festa, discutiu seus investimentos milionários no mercado financeiro: derivativos, títulos públicos, letras hipotecárias, etc; palestrou sobre economia internacional com dois especialistas no tema, bebeu, fumou, cheirou, trepou até a exaustão (cansadas das suas costumárias investidas, I. e B. finalmente anuiram com a indecorosa proposta...)
Mas um certo alguém o observara por todas as longas horas da greco-romana festança. Era o irmão do anfitrião, Leonardo, médico bem-sucedido, rico, boa-pinta, e decidida bichona. Éh, Leonardo sempre tivera uma queda por JP, que era tudo quanto um gay não quer para um enlace matrimonial, mas tudo quanto sonha para uma foda estrondosa. E com a cara e a coragem foi abordar seu cotidiano objeto do desejo. Já tinha pensado numa estratégia e estava disposto a pagar qualquer preço para fazê-la operar eficazmente. No começo o papo rolou fácil, sobre diversos temas (como sempre, JP muito simpático e loquaz). As pessoas passavam por eles só para se despedirem, já que passava das quatro e a festa ia minguando. E antes que nosso (anti-)herói também anunciasse sua partida, Leonardo dera seu xeque-mate: ele, que não era chegado à branquinha, convidou JP para ir à seu quarto aspirar a última carreirinha da madrugada; inocentemente JP aceitou; ambos cheiraram a maldita e incontinenti perderam o juízo, mas por motivos diferentes: Leonardo por paixão, JP por quase overdose...
Nosso (anti-)herói acordou às três da tarde, tropeçando nas pernas, a cabeça tilintando como campainha. Estava só. Apenas um recado do Flávio, dizendo que ele comesse alguma coisa e desse as chaves ao porteiro quando se fosse. Desceu o prédio tentando recordar o que acontecera nas últimas horas, mas não conseguiu...
(...)
O que terá acontecido a JP naquele quarto, naquelas possivelmente ultrajantes horas? Desde então, ele nunca conseguiu juntar a necessária coragem para perguntar a Leonardo qualquer coisa sobre o potencialmente vergonhoso incidente, apesar de haverem alguns sórdidos indícios de que algo anti-natural acontecera àquela madrugada, como, por exemplo, o fato de o Leonardo dar-se ares de grande intimidade consigo, além de algumas lembranças confusas, de corar a face. Será mesmo que JP, devorador de mulheres, estivera, enfim, com um homem na cama?!
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