Desde aquela primeiríssima hora ele a amava. Amava-a deveras, profundamente, como se ele fosse homem feito, como se ela fosse mulher feita. Amava-a tanto que doía. Às vezes, se contorcia de dor, escondido no quarto, debaixo da cama, com medo, com vergonha, porque o sentimento era demais para ele, o corpo dele não o comportava, sua mente ainda em formatação não o comportava. Amava-a todos os dias, acho até que todas as horas de todos os dias. Amava-a com os fatos da realidade e com a imaginação superfértil de rapazola. Amava-a com a visão, mergulhando nas fotos em que apareciam juntos, e amava-a com a memória, lembrando do seu rostinho angelical, lembrando dos seus gestos doces, dos trejeitos engraçados, dos medos de moçoila, que o apaixonavam mais e mais, talvez por vê-la fragilizada e a fragilidade do outro faz a gente amar.
Ele viveu esse amor verdadeiro, esse amor com A maiúsculo, até boa parte da adolescência, até os 15, eu acho. Foi quando as coisas mudaram. O pai dele recebeu uma oferta de emprego e mudou-se da cidade. Ele partiu, mas só o corpo dele foi junto com a família, a alma, os olhos, o coração, ficaram juntinho de Camila. E não teve um dia enquanto durou essa ausência que ele não tenha chorado, chorado alto, soluçando muito, como quem tivesse acabado de perder a mãe. Só de olhar para as fotos dela, desabava num choro ressentido, num desespero profundo, sucumbia a um tipo de dor remota e primitiva que ele sequer poderia imaginar que existia, e que talvez exista em qualquer ser humano, só que mais acentuadamente em alguns.
Era o gestual dela a coisa de que ele mais se lembrava. Pode parecer estranho, talvez, mas a verdade era que, mais que o corpo da Camila, que ele tanto ansiara ter entre os braços, ele adorava os gestos dela, o balé dos braços, das mãos, das pernas, a forma como ela se movia, a forma como ela inclinava a cabeça, por exemplo. Aquela delicadeza lhe parecia uma espécie de iluminação, um elo sagrado, secreto, entre homens e Deus. E tinha também os cabelos esvoaçantes, aqueles cachos louros, reluzindo ao sol – um tesouro que só ele via? E a voz dela, que efeito tranquilizador tinha a voz dela sobre o organismo dele, sobre a mente dele, uma voz singela, melodiosa, da cor do céu, da cor da paz. Ele era mesmo um rapazinho diferente: mais que a boca da Camila, ele amava o sorriso dela. Mais que os olhos azuis da Camila, ele amava o olhar dela, misterioso, prometedor, e um pouco triste. Mais que os atributos femininos que se desenvolviam maravilhosamente, ele amava sua timidez, sua pudicícia, sua forma casta e ingênua de ver o mundo e se relacionar com as pessoas. Ele tinha absoluta convicção de que ela era um anjo que descera à Terra, mas que descera por engano, porque errara as trilhas do Céu.
O que ocorreu com André nestes anos de separação é que foi se tornando, paulatinamente, uma pessoa profundamente solitária, deprimida, mal-humorada, desencantada da vida, das pessoas, do mundo, de tudo enfim. Ele não tinha sonhos, não tinha amigos, não tinha interesses, quaisquer que fossem eles. Relacionava-se com qualquer coisa e com qualquer um apenas por mera obrigação, superficialissimamente, como se nem estivesse lá, como se não ouvisse nada, como se não desse a mínima. Parecia que um mal devorava suas entranhas cotidianamente, ininterruptamente, um mal que talvez ele também alimentasse, de uma forma perversamente estranha. Seus pais percebiam, mas negligentes, acovardados, estupefatos, não lhe apoiavam, nem lhe ofertavam amor o suficiente, e como ele não tinha irmãos, sua doença ia aumentando, ia se agravando, ia supurando, até que findou por sufocar aquele rapazinho alegre e cheio de vida que um dia Camila conhecera; o mal acabou por lhe devorar a alma, enquanto o corpo dele perambulava por aí, sem alma, cidade afora, nas altas madrugadas – ele estaria pensando o quê nesses momentos? O André de outrora morrera, ficou uma sombra divagante, vampiresca, que tomava as paredes dos recintos onde se encontrava, enegrecendo todo o ambiente. Passou a meter medo nos próprios pais, nos companheiros de colégio, em qualquer um que pusesse os olhos nele. Tornou-se uma aberração: um velho amargurado preso no corpo de um jovem de 18 anos. Até seu amor incontrastável por Camila modificara-se. Ela agora a amava como um devoto ama seu Deus. Mas ela era apenas uma adolescente. Como isso poderia frutificar, ir adiante? E acho que se mantinha vivo por causa desse sentimento, a única coisa nele que ainda continha algo de belo, de bom, de humano.
Chegou um dia que o pai anunciou-lhe que voltariam à sua cidade natal. Ele quase não esboçou reação, mas uma chama levantou-se ardente e feroz no seu peito: Camila! Ele tinha de ver Camila, pois agora ele entendia claramente, cabalmente, que tinha uma obrigação para com ela. Camila: luz imortal, santa redentora! Era pra isso que ele estava vivo. Fora para isso que Deus lhe dera a vida e que o mantivera vivo pelos últimos anos de sua amaldiçoada existência. Sim, ele só estava vivo por causa dessa sua obrigação para com Camila, obrigação irrevogável, inabalável, e agora impostergável.
Eles se reencontraram e se amaram ainda mais. Camila parecia disposta a dar-lhe a chance de um amor mundano. Mas ele, não, ele a amava demasiadamente para ser simplesmente isso, ele a amava infinitamente, imemorialmente, intangivelmente, e fazia tempo que compreendera o sentido de seu amor por ela, e a missão que ele – o seu amor, lhe impusera.
Os dois estavam no cinema, e se beijaram. André a convidou para jantar, ele tinha juntado dinheiro para isso. No restaurante, ele pediu suco e tira-gosto, enquanto ela foi ao toalete. Na volta, estavam conversando animadamente, bebendo, comendo, relembrando o doce passado, Camila projetando um futuro auspicioso. Foi quando ela começou a passar mal, estava enjoada. Abaixou a cabeça, pondo-a sobre a mesa. Ele levantou-se, pôs sua cadeira ao lado da dela, passou a mão carinhosamente sobre seu cabelo, e disse:
“Eu te amo, Camila!
Te amei todos os dias da minha vida! Todas as horas da minha vida, todos os segundos da minha vida, sofrida e atormentada vida!
O mundo é mau, Camila. As pessoas são ruins, degeneradas. Não existe salvação para nós, para o homem. Um anjo como tu sofreria demais nesse mundo, meu amor.
Por isso, resolvi que era mais justo te enviar logo para junto Dele, Camila, para que sintas o infinito da Graça Divina em ti e te mistures a ela. Eu não poderia te fazer feliz, Camila. Ninguém poderia. Sem mim, também não terias qualquer chance nesse mundo, mundo cão. Tu és um anjo, mas o mundo é mau, o mundo é cruel, é crudelíssimo! E injusto. Injustíssimo!
Por isso, eu a envenenei, meu amor. Porque eu quero que sejas sempre jovem, sempre pura, sempre o anjo que és. Porque eu quero que não sejas corrompida por esta imundície, eu quero teu corpo imaculado para sempre, meu amor, eu quero tua dignidade imaculada para sempre, meu amor, eu quero tua alma livre para voar, límpida e translúcida, como o coração da Virgem, sem os pecados odiosos e as transgressões espúrias.
Eu te amo, Camila.
Eu te amo tanto, que te matei. Te matei pra te libertar! Pra te libertar do ódio, do opróbrio, da mentira, da indignidade, da doença, da degradação, da decadência física e moral. Dos outros, e talvez até da tua.
Eu sei que vou pagar por isso, na cadeia, e depois, no inferno. Mas o que é a cadeia, o que é o inferno, perto do amor que eu sinto por ti, meu anjo. Eu vou queimar no inferno, enquanto estarás ouvindo Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Camila, que gemia de dor, já quase inconsciente, olhou para André, no seu último esforço. Fitou-o, e chorando balbuciou:
Eu te entendo, meu amor, te perdôo e te agradeço!
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